Eduardo Barchiesi
2 min readAug 23, 2020

Abacaxis às claras

muita coisa essencial não se compreende

quem sabe porque tenham sido feitas

para que não sejam compreendidas

não é a ausência de palavras que faz

deixar de existir o que está existindo

as palavras gostam de vir atrás das coisas

tudo que se imaginasse um dia existisse

de alguma forma preexistia a imitação

é a mola mestra que impulsiona a vida

questão fundamental é saber como imitar

criativamente pois quando a imitação é

inovadora passa a ser agregadora

por mais condição que se tenha só

se pode criar a partir do que existe

acrescentar ao existente algo mais

a adição imaterial de si mesmo

a ousadia de transformar o rito

eleva uma pessoa à individualidade

mas por pôr em risco o edifício todo mantido

com o trabalho servil de tantos é combatida

por que uma pessoa teria como ideal

então a urgência de ser individual

só alguns sentem a danação de procurar

inventar os próprios passos um a um

à medida que avançam constituindo o caminho

a maioria acha que domina o processo

se escondendo em pernicioso isolamento

confundido com mentirosa liberdade

o desejo de todos é estar na festa a todo

custo nem que seja só por espalhafato e um

modo de se agarrar a isso é ser alguma coisa

que os outros vejam como sendo eles próprios

para não por em perigo

a cegueira generalizada

patrocinada pela homogeneização

e pasteurização global

por que arrogar-se o direito de revolta

e vir depor gaguejando

cada um é testemunha de si próprio

não adianta esconder a cara

por que não saber exprimir

que afinal tudo está certo

miraculosamente certo

e o mundo é maravilhoso

por que insistir em entender

que a grande ascensão não passa de

reles decadência se só quem se metamorfoseou

em si mesmo pode entender

por que ter escrúpulos

por que não aproveitar se a vida é tão curta

sentir o delicioso gosto ignóbil

que um rato sente ao andar pelos esgotos

em última análise tocar para frente

levar adiante protegidos pela mesquinhez

reconhecer que há um inviolável

pacto de silêncio em vigor

que todo mundo sabe a verdade

e o jogo é assim mesmo

agir como se não soubesse nada

essa é a regra básica do jogo

encetar a dura luta muda

contra a inapelável natureza humana

por que lutar cada um tem o direito de ser o que é

e dormir tranquilo ou não

não é possível sentir a fome alheia

com o próprio estômago

embora por ter engolido

bem mais do que se pode digerir

se possa estar nauseado de ser gente

estar enfastiado querer refúgio e paz

para encontrar paz ter de esquecer os outros

para encontrar refúgio não ter nada a ver com ninguém

depois de tanto querer

não saber mais o que se quer

só sentir-se ridículo por ter tido a esperança de que

uma coisa que não tem salvação pudesse ser salva

e diante do vexame

se retirar na ponta dos pés

procurando não fazer barulho

Eduardo Barchiesi
Eduardo Barchiesi

Written by Eduardo Barchiesi

Poetastro perdido no próprio rastro

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