Abacaxis às claras
muita coisa essencial não se compreende
quem sabe porque tenham sido feitas
para que não sejam compreendidas
não é a ausência de palavras que faz
deixar de existir o que está existindo
as palavras gostam de vir atrás das coisas
tudo que se imaginasse um dia existisse
de alguma forma preexistia a imitação
é a mola mestra que impulsiona a vida
questão fundamental é saber como imitar
criativamente pois quando a imitação é
inovadora passa a ser agregadora
por mais condição que se tenha só
se pode criar a partir do que existe
acrescentar ao existente algo mais
a adição imaterial de si mesmo
a ousadia de transformar o rito
eleva uma pessoa à individualidade
mas por pôr em risco o edifício todo mantido
com o trabalho servil de tantos é combatida
por que uma pessoa teria como ideal
então a urgência de ser individual
só alguns sentem a danação de procurar
inventar os próprios passos um a um
à medida que avançam constituindo o caminho
a maioria acha que domina o processo
se escondendo em pernicioso isolamento
confundido com mentirosa liberdade
o desejo de todos é estar na festa a todo
custo nem que seja só por espalhafato e um
modo de se agarrar a isso é ser alguma coisa
que os outros vejam como sendo eles próprios
para não por em perigo
a cegueira generalizada
patrocinada pela homogeneização
e pasteurização global
por que arrogar-se o direito de revolta
e vir depor gaguejando
cada um é testemunha de si próprio
não adianta esconder a cara
por que não saber exprimir
que afinal tudo está certo
miraculosamente certo
e o mundo é maravilhoso
por que insistir em entender
que a grande ascensão não passa de
reles decadência se só quem se metamorfoseou
em si mesmo pode entender
por que ter escrúpulos
por que não aproveitar se a vida é tão curta
sentir o delicioso gosto ignóbil
que um rato sente ao andar pelos esgotos
em última análise tocar para frente
levar adiante protegidos pela mesquinhez
reconhecer que há um inviolável
pacto de silêncio em vigor
que todo mundo sabe a verdade
e o jogo é assim mesmo
agir como se não soubesse nada
essa é a regra básica do jogo
encetar a dura luta muda
contra a inapelável natureza humana
por que lutar cada um tem o direito de ser o que é
e dormir tranquilo ou não
não é possível sentir a fome alheia
com o próprio estômago
embora por ter engolido
bem mais do que se pode digerir
se possa estar nauseado de ser gente
estar enfastiado querer refúgio e paz
para encontrar paz ter de esquecer os outros
para encontrar refúgio não ter nada a ver com ninguém
depois de tanto querer
não saber mais o que se quer
só sentir-se ridículo por ter tido a esperança de que
uma coisa que não tem salvação pudesse ser salva
e diante do vexame
se retirar na ponta dos pés
procurando não fazer barulho