Outrora da minha vida
saudades não digo que tenho
também não digo que abomino
os tempos em que era menino
que não foi infância querida
tão pouco foi aurora perdida
anos passados sem glória
trazidos pela cansada memória
a cidade já turbinava a todo vapor
mas dava pra ir devagar com o andor
a pressa era menos neurótica
o progresso ainda longe da robótica
religião era católica apostólica romana
com seus dogmas contraditórios
tinha encantamento na imagem
de nossa senhora cercada de querubim
o padre desfiando a santa missa em latim
não tinha tanto pastor rapinante
bons de bico bem falantes
verdadeiros artistas
decoradores biblistas
autodenominados bispo apóstolo
exímios comerciantes da fé
amantes de grana em vez de ósculo
milionários vendendo milagres
dizimadores de bolsos crédulos
de infelizes sorvedores de vinagre
poucas eram as casas
com bananeira e laranjal
muitos os sobradinhos geminados
espremidos dos dois lados
mas havia na moradia quintal
onde durante o dia batia sol
não se morava empilhado
em prédio de apartamento
escuro mais e mais apertado
era legal
estudar em colégio estadual
onde o ensino era eficiente
não era preciso ir pra escola
sofisticada nem fazer cursinho
caro se aprendia o suficiente
até pra entrar na usp direto
não tinha tanta faculdade
como existe hoje em dia
que pra passar de ano
e conseguir o diploma
basta passar na tesouraria
nos bairros ruas sem pavimento
permitiam jogo de bola de meia
bolinha de gude e de queimada
se empinava pipa ou fazia nada
tudo bobagem tudo besteira
interação corpo a corpo direta
se podia até andar de bicicleta
não se ficava fechado
em segurança no quarto
jogando video game
zoando sozinho na internet
caminhando pelas calçadas
tão esburacadas quanto as de agora
era menor o risco de ter
braço arrancado por carro
afinal tinha bem menos carro
trafegando pelas vias pavimentadas
tão esburacadas quanto as de agora
não dava mais pra nadar no rio
tietê como no tempo do meu avô
o rio já tinha forte odor de cocô
mas nem se compara com hoje
verdadeiro bosteiro a céu aberto
apesar dos bilhões desviados
do tratamento de despoluição
graças ao crescimento da cidade
nosso desenvolvimento sustentado
o céu em noite escura sem lua
embora a fumaça já fizesse estrago
mostrava orion com as três marias
ver aldebaran era um estouro e
apontando para o sul o cruzeiro
com o incremento do progresso
mais veículos tiveram ingresso
e nos dias de hoje ao contrário
estrela só se for em planetário
as praias da baixada santista
pra onde costuma ir paulista
em férias de fim de ano feriados
e fins de semana muitas vezes
pra tomar banho de fezes
e curtir mega engarrafamentos
apresentavam já naquele tempo
apreciável nível de coliforme fecal
nada porém tão assustador
a ponto de matar banhista
somente vômito e diarreia
diferente dos tempos correntes
em que a situação pode ser séria
mesmo com emissário pra mandar
esgoto de tira-gosto de turista
ir navegar nas águas do alto-mar
pelas matas e campinas do interior
era possível caçar paca perdiz
capivara tatu e passarinho
aquilo era considerado normal
não se tinha noção do mal
do risco de extinção das espécies
conceito absorvido devagarinho
na cachola mas bem rapidinho
na prática da escola da vida
com a expansão do desmatamento
necessário na formação de pasto pra boi
plantio de soja esteio da exportação
cana pra combustível de automóvel
por conta do tal de progresso
que é danado de estimulante
questão de trocar jatobá por capim paca por boi
questão de necessidade ou vaidade
questão de humanismo ou dinheirismo
questão de opção ou não sei lá o quê
por isso é então que eu
saudades não digo que tenho
sequer pretendo esquecer
a minha vida de outrora
que não foi aurora querida
tão pouco infância perdida
porque tinha muita coisa boa
mas também muita porcaria
um monte de coisa à toa
igual como acontece agora
quiçá hoje não seja melhor
pior fosse ontem talvez
depende do ponto de vista
saudosista ou progressista
depende do gosto do freguês
deixo a decisão pra vocês